sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
Cessna 150: o melhor treinador civil do mundo
Uma aeronave em particular, entretanto, conseguiu reunir tal número de qualidades para um treinador que se tornou a quarta aeronave civil mais vendida no mundo: o Cessna 150. Desde o primeiro ano de produção, em 1958, até o encerramento da linha, em 1977, foram produzidos 23.839 exemplares, sendo que a maioria foi empregada como treinador básico.
O Cessna 150 é uma aeronave pequena, com apenas 726 Kg de MTOW (Maximum Take-off Weight). É um monomotor de asa alta, com trem de pouso triciclo e dois lugares. Substituiu o Cessna 140 na linha de produção, oferecendo a vantagem de um motor mais potente e o trem de pouso triciclo, bem mais fácil de operar no solo que os trens de pouso convencionais. O motor utilizado foi o Continental O-200A, de 100 HP a 2.750 RPM, com 4 cilindros horizontais opostos.
O primeiro protótipo do Cessna 150 voou em 12 de setembro de 1957, e as primeira aeronaves de série saíram da linha de produção em Wichita, Kansas, um ano depois, em setembro de 1958.
Desde o início da produção, os Cessnas 150 demonstraram serem incrivelmente dóceis, fáceis de voar e de custo de operação muito baixo, características ideais para o treinamento de novos pilotos. De fato, por volta de 1969, 61 por cento dos pilotos, nos Estados Unidos, eram treinados a bordo desses pequenos monomotores. Esse fato foi muito favorável à Cessna, pois a maioria dos pilotos, depois de checados, tendiam a preferir aeronaves monomotores Cessna para voar, como os 172 Skyhawk, 182 Skylane, 206 Stationair e 210 Centurion, aeronaves mais pesadas mas com características de voo muito semelhantes às do pequeno 150.
De fato, a estratégia da Cessna era produzir aeronaves de transporte pessoal e/ou familiar, monomotores de asa alta facilmente pilotáveis, quase um automóvel voador. A estratégia deu certo, pois os monomotores Cessna estão entre os mais produzidos aviões civis da história. Esses monomotores ficaram em produção por décadas e, ainda que a produção tenha sido interrompida por algum tempo, os modelos 172, 182 e 206 ainda são fabricados em pleno Século 21, uma longevidade de mais de 50 anos de produção.
O pequeno Cessna 150 não tem a intenção de ser uma aeronave de excelente desempenho. Tem pouca potência disponível para o peso, e uma hélice razoável para o voo em cruzeiro, mas bastante sofrível para decolagem e subida, especialmente em aeródromos elevados e/ou quentes. Seus tanques garantem uma autonomia de quase 6 horas.
O motor Continental O-200, embora simples e confiável, é um tanto frágil para o treinamento de pilotos, exigindo maior controle dos instrutores quanto à operação. Acelerações ou reduções bruscas de RPM devem ser evitados, assim como longos planeios em ar frio, sob pena de rachaduras nos cilindros. O sistema de partida é particularmente frágil e de difícil manutenção, e muitas escolas de aviação optaram pela sua desativação, optando pela partida manual na hélice.
A ergonomia não é boa: embora os assentos tenham regulagem em distância, pilotos altos tem sérios problemas, pois as pernas interferem nos manches em comandos de rolamento. Há pouco espaço para pilotos mais corpulentos.
A direção no solo é muito fácil, graças à triquilha comandável pelos pedais do leme. Em voo, o cruzeiro pode ser feito a mais de 100 Knots TAS . A velocidade de estol, com flaps abaixados a 40 graus, é de apenas 42 Knots, excelente para missões de treinamento básico. O avião apresenta, no entanto, tendência a cair para o lado direito no estol, mas isso é facilmente corrigível até pelo mais mais inexperiente dos pilotos.
Os primeiros exemplares do Cessna 150 (foto acima) tinham a fuselagem traseira elevada e deriva vertical. A partir dos modelos C150D/E (foto abaixo), produzidos a partir de 1964, a fuselagem foi dramaticamente modificada, rebaixando-se o cone de cauda e introduzindo-se uma janela traseira bipartida, o que melhorou muito a visibilidade do piloto para trás. Uma deriva enflechada a 35 graus e de linhas mais retas passou a equipar o modelo C150F, a partir de 1966. A aparência geral da aeronave pouco se modificou daí em diante.
A Cessna produziu alguns modelos especiais do Cessna 150, e o mais interessante deles foi o modelo A150 Aerobat. Essa aeronave podia suportar cargas estruturais de 6 G positivos e 3 G negativos, permitindo manobras acrobáticas limitadas como parafusos, chandelles, oito-cubanos e reversões verticais. Essas aeronaves possuiam assentos especiais, que permitiam o uso de para-quedas de assento, além de portas de liberação rápida. Os carburadores de cuba e a falta de potência disponível impediam, entretanto, a realização de manobras mais radicais, assim como o voo invertido.
Em 1978, os Cessnas 150 foram substituídos na linha de produção pelos modelos C-152. A célula era praticamente a mesma, mas os motores foram substituídos pelos Lycoming O-235, de 108 HP de potência, e os flaps foram limitados a 30 graus de extensão máxima. O comportamento e o desempenho do avião pouco mudaram, mas o motor era mais robusto e suportava melhor os comandos bruscos dos alunos. Essa versão permaneceu em produção até a Cessna fechar definitivamente a linha dos monomotores leves, em 1986.
O fabricante Reims, da França, fabricou sob licença, 1.764 aeronaves F-150. Essas aeronaves eram praticamente idênticas às produzidas nos Estados Unidos, à exceção do motor. Os F-150 eram equipados com motores Rolls-Royce-Continental O-240, de 130 HP.
Mesmo depois de 23 anos após a produção dos últimos exemplares, o Cessna 150 permanece como o treinador ideal para os cursos de pilotagem básica, fato comprovado pelo valor de revenda de aeronaves usadas, até hoje exportadas para muitos países. Embora a Cessna tenha tentado oferecer o Cessna 172 como treinador, por algum tempo, cedeu às pressões do mercado e voltou a oferecer um monomotor de 2 lugares para treinamento, o modelo C-162 Skycatcher, produzido na China a partir de 2007.
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
Aero Boero: um avião polêmico
Esse texto foi publicado originalmente na revista Aviação em Revista Em 1986, o Departamento de Aviação Civil estava preocupado com a situação da frota de aeronaves de instrução dos aeroclubes brasileiros, constituída, em sua maior parte, de aviões construídos nas décadas de 40, 50 e 60. Embora estimados pelos pilotos, os veteranos Paulistinhas CAP-4 e P-56C já se encontravam muito desgastados, obsoletos e incapazes de suprir as necessidades dos Aeroclubes. Sem sistema elétrico, sem rádio e sem qualquer recurso mais avançado, sofriam cada vez mais restrições para voar no já congestionado tráfego dos aeroportos brasileiros. A necessidade de renovação e reposição da frota era urgente. Infelizmente, não existia no mercado, à época, uma aeronave de treinamento disponível para aquisição em grande quantidade e por um custo viável. A Cessna havia encerrado a fabricação de todas as aeronaves leves, a Piper ainda se reerguia de seu processo de falência, e a Embraer estava desativando sua linha de produção de aeronaves leves para se concentrar na fabricação de aeronaves comerciais e militares. O DAC aventou a hipótese de reativar a fabricação dos Paulistinhas, mas não houve interesse de nenhum fabricante. A solução para o impasse estava na Argentina. Dois fabricantes daquele país, Aero Boero e Chincul, tinham condições de fabricar aeronaves de treinamento. A Aero Boero sugeriu reativar a produção do modelo AB-95/115, que voou pela primeira vez em 12 de março de 1959, e cujo último exemplar havia sido fabricado em 1976. A Chincul podia oferecer o modelo PA-18, último descendente de uma longa linha de treinadores leves da Piper, fabricado sob licença. A única proposta efetivamente apresentada, da Aero Boero, foi considerada interessante. O fabricante poderia atender um pedido de cerca de 400 aeronaves em curto espaço de tempo, 5 ou 6 anos. Ademais, a proposta também era política e economicamente interessante para os governantes José Sarney, do Brasil, e Raúl Alfonsín, da Argentina, interessados em uma parceria que viria a se tornar, mais tarde, no Mercosul. O DAC enviou 6 experientes instrutores de vôo civis e dois oficiais da Força Aérea Brasileira para avaliar uma aeronave disponibilizada pelo sr. Hector Boero, presidente da Aero Boero, em Monteros, sede da fábrica. Embora fizessem ressalvas quanto à ergonomia da cabine e quanto à baixa potência de seu motor AVCO Lycoming O-235, de 115 HP, avaliaram positivamente o avião. O DAC deu sinal verde para a aquisição, a um preço inicial de US$ 74 mil para cada exemplar. Várias unidades do modelo AB-180, que Hector Boero oferecia no mercado, desde 1967, como avião de turismo leve ou agrícola, foram também encomendados, com a finalidade de rebocar planadores nos aeroclubes. A fabricação da aeronave iniciou-se em 1987, e os primeiros 5 exemplares foram entregues no início de 1988, no Aeroclube do Rio Grande do Sul, em Belém Novo/RS. O DAC convidou instrutores de vôo de vários Aeroclubes para adaptação e padronização na nova aeronave. A intenção do DAC, nessa época, era criar 5 grandes centros de formação de pilotos, para substituir as centenas de aeroclubes deficitários espalhados pelo Brasil, idéia que acabou não sendo concretizada. Com a chegada, até 1994, de quase 400 exemplares de AB-115 e AB-180, o DAC doou aos aeroclubes as veteranas aeronaves de sua frota, uma heterogênea coleção de HL-1, CAP-4, P-56C, PA-18, PA-20 e J-3, muitas das quais ainda operam em sua função original. |
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Os primeiros 5 exemplares foram entregues no início de 1988, no Aeroclube do Rio Grande do Sul, em Belém Novo/RS |
O Aero Boero em serviço A substituição dos Paulistinhas pelos Aero Boero não significou um grande avanço para a instrução de vôo. Para os pilotos, mudanças bem-vindas foram a partida elétrica, o intercomunicador e o rádio, mas, no geral, não houve grande ganho de desempenho e nem acréscimo de equipamento mais avançado. O Aero Boero, na verdade, é conceitualmente obsoleto. Uma antiga solicitação dos instrutores de vôo não foi atendida: que o avião de instrução pudesse realizar algumas manobras acrobáticas básicas. Nesse aspecto, o Aero Boero, classificado como Categoria Normal, era inferior ao Paulistinha P-56C, o que obrigou o DAC a reformular o programa de instrução, retirando algumas manobras do mesmo, como o parafuso comandado. Os instrutores que foram avaliar o avião na Argentina, entretanto, realizaram várias manobras acrobáticas com o avião, inclusive tendo a bordo o Sr. Hector Boero, e, dizem, que a aeronave somente não foi homologada para vôo acrobático porque o CTA pediu que o fabricante entregasse 3 aeronaves para avaliação, e o Sr. Boero não concordou. Desde o início de sua operação nos aeroclubes, o avião tornou-se bastante polêmico. Havia entre os pilotos suspeitas de fragilidade estrutural, e boatos, nunca confirmados, de acidentes causados devido a isso. Outro boato, sem fundamento, é o de que o avião tinha a cauda pesada e era sujeito a entrar em parafuso chato. O avião, efetivamente, tem um comportamento mais instável no solo que os Paulistinhas, e alguns alunos chegavam mesmo a temer a aeronave, preferindo voar em outros modelos. O fato é que o avião tem um trem de pouso deficiente: frágil, mal posicionado, bitola estreita e sem amortecedores. Posicionado muito à frente do CG, dificultava a manobra de levantamento da cauda durante a decolagem, além de piorar a estabilidade no solo, especialmente com vento de través. A bitola estreita, aliada à grande envergadura, torna praticamente inevitável o choque das pontas das asas com o solo, em um cavalo de pau, e a falta de amortecedores provoca saltos no pouso. O maior problema é a fragilidade do apoio das molas do trem na fuselagem, logo abaixo do assento dianteiro. Caso esse apoio se quebre, as molas podem ferir o ocupante do assento, geralmente o aluno. A instabilidade no solo é uma característica inerente a todos os aviões com trem de pouso convencional, mas, nesse aspecto, o Aero Boero não é pior que outras aeronaves mais bem afamadas, como os antigos Cessna 180. Os incidentes de pouso com Aero Boero foram causados, em sua maior parte, por excesso de velocidade na aproximação ou por habilidade insuficiente do piloto (natural, pois se trata de um treinador...). Em vários aspectos, o Aero Boero é uma aeronave bastante satisfatória: o piloto tem boa visibilidade para frente, característica rara em uma aeronave de trem convencional. É bastante dócil e estável em vôo, e muito didático e previsível em qualquer tipo de manobra. Graças à grande envergadura, tem uma boa razão de planeio (11:1). Mantêm a autoridade de comando em baixa velocidade, e os estóis são mansos, simétricos e bem advertidos. Ao contrário do mito, não existe nenhuma tendência a entrar em parafuso chato. Glissar um Boero é uma experiência interessante e surpreendentemente agradável. O desempenho da aeronave não é brilhante. Com 115 HP para 770 Kgf de peso máximo, não se poderia esperar muito. É razoavelmente satisfatório nas decolagens e subidas, mas sua velocidade de cruzeiro é baixa, apenas 90 mph. Levando-se em consideração que a maior parte da vida útil de um Aero Boero consiste em manobras básicas e toques-e-arremetidas, pode-se considerar que a escolha do grupo moto-propulsor foi adequada. Um aumento de potência traduzir-se-ia, muito provavelmente, em aumento do consumo e aumento do preço da hora de vôo para o aluno. O motor escolhido, um AVCO Lycoming O-235C2, de 4 cilindros, 3,85 litros de cilindrada e 115 HP a 2800 RPM, é um dos pontos altos do avião, apesar da baixa potência. Em serviço, mostrou-se bastante robusto e econômico, resistindo bravamente à difícil tarefa de instrução, repleta de acelerações e desacelerações bruscas e outros mal-tratos. Chega facilmente ao TBO de 2400 horas sem maiores problemas, ao contrário dos Paulistinhas e Cessnas 150, que, com seus frágeis motores Continental C-90 e O-200A, raramente atingem o TBO intactos, na instrução de vôo. Além dos trens de pouso, a maior deficiência do Aero Boero está na ergonomia. Os assentos não são reguláveis, nem em distância nem em altura. Os pedais de freio, de calcanhar, são mal posicionados, e acionar a alavanca dos flaps exige um bom contorcionismo do piloto. Pilotos muito baixos ou muito altos encontram muita dificuldade. Embarcar e desembarcar é uma tarefa difícil. Os comandos do avião, ainda que precisos, são pesados, tornando a pilotagem um tanto cansativa, especialmente na instrução. A perda de aeronaves é quase inevitável na instrução primária de vôo, mas as críticas relativas à falta de segurança dos Boeros nunca se justificaram. O avião pode ser pouco ergonômico, cansativo e desconfortável, mas não é perigoso, caso seja conduzido dentro de suas limitações operacionais e com responsabilidade. O DAC, atualmente, está renovando a frota de treinadores com o Aeromot Guri, cujas entregas já começaram, mas se processam em ritmo muito lento. Os Guri são equipados com o mesmo motor dos Aero Boero, mas têm 900 Kgf de peso máximo na decolagem, definitivamente underpowered. Como o DAC está em fase terminal, com a criação da ANAC, não se sabe o que vai acontecer no futuro, nem com os Aero Boero, nem com os Guri e nem com os aeroclubes. O fato é que os Aero Boero remanescentes já sofrem com a falta de peças de reposição, e falta de hélices e montantes de asa, por exemplo, já podem confinar aeronaves no solo por muito tempo, o que levou alguns aeroclubes a utilizar hélices "falsas", de madeira, para continuar a usar o avião, pelo menos até a próxima visita do INSPAC do DAC. Texto e Fotos: Jonas Liasch Filho. Aviação em Revista. Foto do AB PP-FGI: Rodolfo Phillip - Airlines.net |